Direito fundamental ao lazer e as férias como direito social!!!
O artigo 6º da Constituição, utilizando-se de princípio de caráter finalístico, como diz Ingo Wolfgang Sarlet [1], expressando “conteúdo desejado, no sentido de um estado ideal a ser alcançado (moralidade, dignidade da pessoa humana, pluralismo político etc.)”, assegura como direitos sociais a educação, a saúde, a alimentação, o trabalho, a moradia, o transporte, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, além de assistência aos desamparados. São direitos fundamentais, portanto, a cargo do Estado que, por meio de políticas públicas se compromete a assegurar aos cidadãos e que, dentro da dimensão subjetiva são passíveis de serem exigidos pelo destinatário. Numa dimensão objetiva “possuem uma eficácia dirigente ou irradiante […] que impõe ao Estado o dever de permanente realização dos direitos sociais”, nas palavras de Ingo Wolfgang Sarlet.
No caso artigo 7º, no Capítulo II, Dos Direitos Sociais, da Carta Constitucional, são os trabalhadores legítimos titulares dos direitos ali relacionados. O direito às férias, ali reconhecido no inciso XVII, embora com fundamento jurídico obrigacional decorrente do contrato de trabalho, tem com o direito social ao lazer, vínculo direto e complementar. Desta forma, o direito às férias se completa com a ação do Estado, quando proporciona condições para que o trabalhador dele usufrua.
O direito fundamental ao lazer, claro está, não se realiza sozinho, especialmente nos grandes centros urbanos e carrega a obrigação do Estado de assegurar, por meio de políticas públicas que os cidadãos tenham acesso a bens culturais, entretenimentos em parques públicos, podendo deles usufruir com liberdade e sem discriminação em seus momentos de diversão, garantindo segurança e higiene ambiental, com sanitários adequados ao uso, a fim de que seja preservada a dignidade da pessoa humana. Então, pode-se dizer que a afirmação do direito ao lazer não caminha de forma isolada, cabendo ao Estado papel de relevância extrema para tornar possível a realização pessoal da vida em sociedade.
A propósito, muito se fala em redução da jornada de trabalho, com adoção de quatro dias de trabalho e três dias de descanso, totalizando, na semana, 35 horas. Todavia, necessariamente, o poder público tem grande responsabilidade sobre isso e deve assegurar que o tempo ocioso, destinado em tese ao repouso, seja usufruído com práticas que reflitam efetivamente o uso do ócio em benefício da saúde mental e física dos trabalhadores e de seu convívio social. Se assim não for, a redução da jornada levará os trabalhadores ao ócio improdutivo e poderá desaguar na busca de novo emprego, em qualquer modalidade possível, para aumentar sua renda, tornando ineficaz a proposta que visa combater a fadiga e incentivar o repouso e convívio familiar ou social.
Nas relações de emprego, quando o empregado adquire o direito a férias, embora se possa dizer que se trata de aquisição exclusiva e diretamente contra o empregador, em decorrência do vínculo jurídico mantido, gerando obrigações de pagamento e concessão de período de gozo, os efeitos que desse direito se fazem sentir, implicam diretamente em aquisição de um direito contra o Estado, garantidor dos direitos sociais, que se beneficiou direta ou indiretamente da atividade produtiva do trabalhador e se comprometeu, pelas garantias constitucionais a proporcionar o gozo de descanso do trabalho como direito fundamental ao lazer.
Por isso, o direito a férias anuais, em algumas legislações, já se distanciou da condição exclusiva de direito decorrente de vínculo de emprego e passou para a condição de benefício de natureza social, como forma de preservar a saúde mental e física de todos.
Neste sentido, não se justifica que o direito a férias, tal como ocorre entre nós, esteja condicionado a número de faltas injustificadas e a perda do direito em caso de justa causa. Ora, se estamos falando de direito fundamental ao descanso, ipso facto, ele não pode estar submetido a situações de perda porquanto se contrapõe à garantia do direito. Nem mesmo a justa causa deveria ser capaz de eliminar o direito a receber o período incompleto de férias porquanto se trata de direito adquirido em função da prestação de serviços que a cada mês de trabalho credita ao empregado 2,5 dias de férias. A regra que pune o empregado não apresenta fundamento jurídico capaz que possa justificar a supressão desse direito.
Caixa de férias
A título de informação, a França, desde 2 de março de 2016, aboliu a perda do direito a férias de período incompleto quando a rescisão ocorresse por justa causa, alinhando-se à Diretiva Europeia 2003/88.
Lembro que a Bélgica dispõe de tratamento especial para as férias anuais remuneradas para os operários (“ouvriers”). O empregador não paga diretamente as férias, mas cotiza para a previdência social mensalmente, ficando assegurado ao trabalhador, por meio de “caixa de férias” (Office national de vacances annuelles) o direito à percepção do que se chama duplo pecúlio de férias, independentemente das férias concedidas pelo empregador. Portanto, trata-se de direito assegurado por meio da previdência social, acumulando o empregado este direito qualquer que seja a condição de término do contrato de trabalho.
Entre nós, a Constituição de 1988 inaugurou uma novidade, aliás prevista em normas coletivas da época, denominada abono de férias, que foi o pagamento de 1/3 calculado sobre a remuneração das férias, por ocasião de sua concessão pelo empregador. Assim fazendo, procurou, de uma lado, alimentar a possibilidade de gozo de férias com valor excepcional e que, em tese, não estaria comprometido com as despesas de rotina mensais e, de outro lado, desestimular a venda de parte do período de gozo das férias, eliminando o abono pecuniário previsto na lei ordinária. Lamentavelmente a legislação coisificou e precificou o direito ao lazer, transformado em patrimônio negociável pelo trabalhador.
Não se pode negar, portanto, que a obrigação de concessão de férias aos trabalhadores pelos empregadores deve ser complementada pela ação do Estado na criação de oportunidades para que os trabalhadores possam usufruir dos bens culturais e de ambientes saudáveis e lúdicos a fim de que possam efetivamente usufruir do período de férias socialmente.